Curvas png

Introdução

Ao longo das últimas décadas, as mudanças climáticas e o constante aumento do crescimento populacional têm preocupado os especialistas quanto à disponibilidade de água para seus múltiplos usos. A gestão da água deve ser eficiente para minimizar possíveis conflitos, equilibrar as demandas das diferentes atividades humanas e evitar o avanço da degradação ambiental.

A disponibilidade de água em uma bacia hidrográfica é dada pelo conhecimento da vazão nos rios. As três vazões de referência mais utilizadas são a Q90 e a Q95, que representam vazões superadas ou igualadas em 90% e 95% do tempo, respectivamente, e a vazão média mínima de 7 dias consecutivos com 10 anos de período de retorno (Q7,10). A vazão média de longo período (Qm) é outro parâmetro hidrológico essencial pois representa, teoricamente, a maior vazão que pode ser regularizada com barramento.

As informações sobre a vazão em bacias hidrográficas podem ser consideradas um desafio na gestão dos recursos hídricos em muitos países. No entanto, os modelos hidrológicos permitem a otimização das informações obtidas em locais monitorados para a previsão em bacias hidrográficas não monitoradas. As previsões de vazão podem ser obtidas pela transferência de dados históricos entre bacias hidrográficas usando a regressão linear múltipla (MLR) que é o pioneiro dos métodos, e por novas tecnologias como a abordagem geoestatística (GEA), as técnicas que usam o balanço de volume nas bacias hidrográficas (VBW) obtido por produtos de sensoriamento remoto e as técnicas de aprendizado de máquina (MLT).

Neste contexto, este texto visa analisar diferentes técnicas de se estimar Q90, Q95, Q7,10 e Qm utilizando várias abordagens e estratégias, ponderando suas vantagens e limitações.

Método da regressão multivariada

A regressão linear múltipla (MLR) é um dos métodos mais antigos e amplamente utilizados para predição de variáveis hidrológicas em locais não monitorados, usando descritores físicos ambientais associados às bacias hidrográficas. Neste método, as variáveis dependentes (geralmente vazões) são calibradas para relacionar variáveis independentes (atributos físicos climáticos e morfométricos das bacias hidrográficas), para construir relações empíricas que podem ser usadas para prever as variáveis as dependentes em bacias hidrográficas não monitoradas.

Um modelo MLR geral para estimar um parâmetro hidrológico é representado pela Eq. 1:

Y= a0+a1.x1+a2.x2+ak.xk+ є (1)

Em que Y é a variável dependente (vazão), xi para i = 1, 2, …, k são os descritores físicos (variáveis independentes), ai para i = 0, 1, 2, …, k são os coeficientes regionais e ε é o resíduo do modelo.

A previsão de vazão no MLR apresenta, em geral, bom desempenho, principalmente quando aplicada em regiões hidrologicamente homogêneas, onde as características climatológicas e topográficas são semelhantes, e as respostas hidrológicas também tendem a ser semelhantes, mesmo que essas regiões não estejam geograficamente localizadas lado a lado. Em regiões hidrologicamente homogêneas, funções lineares costumam fornecer uma boa aproximação para modelos regionais, mas não é a mesma realidade em uma área mais ampla, na qual métodos alternativos poderiam prever melhor as vazões, sendo essas regiões heterogêneas. Entretanto, em um estudo realizado no estado do Paraná, o método MLR superou a técnica de aprendizado de máquina Random Forest (RF) para previsões de vazões mínimas de referência, mas esse resultado não é comum.

Em 2021 foi desenvolvido um modelo baseado em MLR para estimar a vazão em vários segmentos de uma curva de permanência, incorporando características físicas das bacias e diferentes dados climáticos para cada segmento. Este estudo analisou a sensibilidade da proximidade e as características entre o doador (bacias com estações fluviométricas) e o receptor (bacias sem medições) para séries históricas de dados de vazão no Nepal. Os resultados mostram que as técnicas de regionalização MLR funcionam melhor para vazões de média a baixa (Q90 e Q95) do que para vazões altas (Q5 e Q10).

As vazões mínimas de referência são ferramentas importantes para avaliar a disponibilidade de água nas comunidades rurais, especialmente naquelas com problemas de extração excessiva. No entanto, como há falta de dados de vazão e pontos de medição, métodos de regionalização têm sido usados para prever as vazões mínimas de referência necessárias para manter os usos da água. Em 2022 foi realizado um levantamento que abrangeu 92 bacias hidrográficas e 46 comunidades rurais selecionadas no estado de Goiás. Foram selecionadas 21 bacias por possuírem estações de medição de vazão e também por permitir estimar Q95 por três diferentes metodologias de MLR. Os resultados mostraram uma grande variação entre os valores medidos e estimados pelas três metodologias, mas as análises estatísticas mostraram que as equações de regressão utilizadas pela metodologia do órgão gestor oficial do estado (com base na estimativa de vazão específica) mostraram-se mais adequadas para aplicação nas bacias hidrográficas rurais daquele Estado, principalmente nas de maior porte.

Método geoestatístico

A regionalização de vazões é uma técnica utilizada em áreas onde os dados hidrológicos são escassos ou inexistentes. Embora inúmeros estudos tenham sido desenvolvidos para aprimorar essa técnica, resultados insatisfatórios ainda ocorrem com frequência. Além das metodologias de regionalização de vazões, cujo princípio básico é o uso do MLR, aplicado a regiões hidrologicamente homogêneas, outras opções são aquelas que utilizam técnicas de interpolação e extrapolação automática em ambiente de sistemas de informação geográfica (SIG).

A abordagem geoestatística (GEA) apresenta as seguintes vantagens: (i) não depende da inserção da precipitação média anual para a realização dos cálculos, pois esta pode ser espacializada; (ii) não está vinculada à determinação de regiões hidrologicamente homogêneas; e (iii) suspeita-se que possa ser aplicada a todos os tamanhos de bacias; estudos futuros devem ser realizados para corroborar esta última premissa.

O modelo GEA geral para estimar um parâmetro hidrológico é representado pela Eq. 2:

Y= a0+a1.x1+a2.x2+ak.xk+S+ є (2)

Em que S são efeitos aleatórios responsáveis pela correlação espacial.

Um grupo brasileiro, utilizando uma abordagem GEA para desenvolver modelos abrangentes de regionalização hidrológica para o estado de São Paulo, encontrou melhores resultados com essa abordagem do que com a antiga regionalização realizada por modelos do tipo MLR aplicados em regiões homogêneas deste Estado, e que havia sido implementada na década de 1980.

As curvas de permanência fornecem informações rápidas e diretas sobre o comportamento dos recursos hídricos de uma determinada bacia. Assim, estimar a curva de permanência é importante para bacias que possuem poucos ou nenhum dado de monitoramento para períodos sazonais ou anuais. A abordagem da GEA para prever curvas de permanência para locais não medidos representa um avanço para este tópico de pesquisa. No entanto, poucos resultados têm sido observados, geralmente superestimados (tendências positivas), principalmente para vazões baixas.

Também no Brasil, foi realizado um estudo com o objetivo de estimar curvas de permanência para períodos anuais e sazonais, utilizando um modelo baseado em GEA, para o estado de Santa Catarina visando uma previsão imparcial. Dados fluviométricos de 81 estações foram utilizados neste estudo. Essas estações tinham uma alta densidade espacial e estavam bem espalhadas pela área de estudo. Vinte e quatro variáveis independentes foram usadas para descrever as bacias: coeficiente de compacidade, comprimento total do córrego, comprimento do canal principal, densidade de drenagem, maior distância de diferença, fator de forma, frequência do córrego de primeira ordem, elevação média, declividade média, área de drenagem, número de riachos, diâmetro topológico, perímetro, razão de alongamento, razão de área, razão de bifurcação, razão de circularidade, razão de comprimento, razão de declividade, precipitação anual, precipitação de primavera, precipitação de verão, precipitação de outono e precipitação de inverno.

O mapa das curvas de permanência e, consequentemente, de todos os quantis, e os parâmetros de forma e escala, foram modelados geoestatisticamente. Inicialmente, foram verificados alguns pressupostos básicos dos parâmetros das curvas de permanência, como normalidade dos dados e estacionariedade espacial. Posteriormente, foi realizada uma inferência de máxima verossimilhança para ajustar os modelos geoestatísticos e estimar as melhores formas, comparando esses modelos GEA com modelos tradicionais tomados como padrão (modelos MLR). Finalmente, a interpolação espacial foi realizada e o desempenho foi testado por validação cruzada “leave-one-out” (LOOCV)). Os modelos GEA se ajustaram melhor e tiveram melhor desempenho do que os modelos MLR. A mediana dos resíduos relativos para os períodos anuais e sazonais foram imparciais durante toda a duração.

Métodos que realizam o balanço volumétrico utilizando produtos de satélite

Recentemente, a aplicação do sensoriamento remoto na Hidrologia tem proporcionado o desenvolvimento de modelos com bom desempenho para monitoramento e estimativa de variáveis de interesse. Além disso, essas ferramentas permitem a espacialização de variáveis importantes, como a precipitação (PPT) e a evapotranspiração (ET), que são extremamente relevantes para o aprimoramento de modelos hidrológicos, estimando informações essenciais na gestão de recursos hídricos.

Os métodos convencionais de previsão de vazão fluvial requerem uma grande quantidade de dados hidrológicos e meteorológicos. A medição desses dados é cara, demorada e consiste em um processo difícil. Assim, a comunidade hidrológica tem aplicado várias metodologias para estimar a vazão dos rios, usando os dados disponíveis dos medidores fluviométricos para construir modelos hidrológicos, baseados em PPT e ET sobre as bacias hidrográficas.

Um modelo simples para estimar a vazão é o balanço hídrico sobre a bacia hidrográfica, que é o balanço calculado pela PPT como entrada de água, menos a ET, a vazão e armazenamento positivo de água no solo. Assim, a vazão pode ser obtida quando os demais componentes do balanço hídrico são conhecidos. A metodologia consiste em estimar a vazão média anual (Qm) com base na PPT anual menos a ET, usando uma equação do balanço hídrico (WBV) simplificada da bacia hidrográfica.

Um modelo WBV geral para estimar o parâmetro hidrológico Qm é representado pela Eq. 3:

Qm= PPT-ET+ є (3)

Estimativas multissatélite integradas para a PPT (GPM-IMERG) e dados de ET de troca atmosférica-terrestre (ALEXI) podem ser usados como produtos de sensoriamento remoto na WBV, enquanto o Qm é estimado como a diferença.

A estimativa de Qm obtida por uma equipe brasileira usando o WBV foi comparada com os dados observados de medidores fluviométricos em cada bacia hidrográfica com sucesso no Estado do Paraná. As principais vantagens desta metodologia consistem na simplicidade e no bom desempenho do modelo, bem como nos dados livres de PPT e ET, especialmente em regiões onde os dados dos medidores fluviométricos são ausentes. Os autores analisaram o efeito da área, da declividade e do tipo de cobertura vegetal no desempenho da estimativa de Qm. Um desempenho semelhante foi observado em diferentes áreas com diferentes percentuais de inclinação. A cobertura vegetal, no entanto, afetou o desempenho do modelo. O WBV com produtos de sensoriamento remoto teve melhor desempenho em bacias hidrográficas com maior percentual de floresta e pastagem (>25 e 15%, respectivamente) e menor de soja (≤15%). No cenário estudado, o WBV superestimou a Qm nas microbacias, o que é razoável uma vez que não foram consideradas alterações no armazenamento de água no solo. A estimativa de Qm por um WBV simples usando produtos de sensoriamento remoto fornece uma importante ferramenta hidrológica para o gerenciamento de recursos hídricos e a possibilidade de usar a mesma abordagem em outras bacias hidrográficas, com diferentes características climatológicas e topográficas.

Métodos de aprendizado de máquina

Recentemente, as técnicas de aprendizado de máquina (MLT) chamaram a atenção dos hidrólogos, devido à sua capacidade de trabalhar com “big data” e resolver os mais diversos problemas. O Random Forest (RF) é uma técnica de aprendizado de máquina desenvolvida em 2001 que pode ser usada para fins de previsão e classificação. A regressão RF pode trabalhar com relacionamento não linear entre variáveis, combinando muitas árvores de regressão, lidando com várias amostras de dados de treinamento originais e analisando as árvores de decisão.

Uma árvore de decisão pode ser definida como um diagrama de análise hierárquica, em que cada nó interno representa uma variável independente, o ramo representa o resultado do teste e cada nó terminal (folha) representa uma decisão. As regras de decisão para divisões de nós são ajustadas visando otimizar a homogeneidade da variável dependente (Figura 1).

Figura 1. Diagrama de análise hierárquica Random Forest.

O uso do RF em recursos hídricos é recente. O RF tem sido usado na previsão do preço da água, regionalização dos parâmetros de modelo hidrológico horário, simulação de descarga de inundação em grande escala e vários parâmetros e processos hidrológicos. No entanto, poucos estudos focaram na aplicabilidade do RF para predizer quantis específicos ao longo da curva de permanência. Destaca-se que os modelos RF permitem a interpretação dos resultados obtidos e podem ser usados para complementar outras abordagens. Além disso, a maioria das variantes do RF foram implementadas na linguagem de programação R e estão disponíveis gratuitamente.

Devido à importância da frequência de excedências específicas nas curvas de permanência (Q90 e Q95) e da média de longo período (Qm) na gestão dos recursos hídricos, pesquisadores brasileiros analisaram o desempenho dos métodos dos modelos MLR e RF na previsão dessas vazões. Para tanto, utilizaram uma amostra em larga escala com 81 bacias hidrográficas do estado do Paraná. Focaram as atenções nas vazões de referência por ser uma variável utilizada, especificamente, na área de estudo onde este estudo foi aplicado, podendo assim contribuir efetivamente com a gestão dos recursos hídricos, de forma prática, fornecendo modelos e apontando os descritores relevantes para a previsão da vazão na região. Adicionalmente, visaram contribuir com o estado da arte em Hidrologia respondendo às seguintes questões: (i) o RF supera o MLR em bacias hidrográficas de grande escala, na previsão de vazões de referência? (ii) o baixo custo do RF, em termos de tempo de execução e implementação de software livre, suporta sua aplicação para previsão de vazões de referência? (iii) um subconjunto de descritores climáticos e de paisagem poderia ser usado para a previsão de vazões de longo período e vazões mínimas por modelos de RF?

Os autores concluíram que o método MLR superou o RF, mas seus desempenhos foram semelhantes em termos de métricas de erro. Assim, o RF pode ser proposto como um novo método para previsões de vazão de referência em regiões subtropicais.

Em 2021 um outro grupo de autores comparou métodos de regionalização em 41 bacias irlandesas e concluíram que o MLR estimou melhor Qm, enquanto RF teve melhor desempenho na estimativa de vazões altas e baixas.

No mesmo ano, outros pesquisadores realizaram um estudo que teve como objetivo utilizar diferentes abordagens de MLT para regionalizar vazões em bacias tropicais, analisando suas vantagens e limitações. Os algoritmos utilizados foram RF, Earth e um MLR. As variáveis de resposta foram três tipos de vazões mínimas (Q7,10, Q95 e Q90), além de Qm. O banco de dados envolveu 76 covariáveis (variáveis independentes) relacionadas à morfometria, topografia, clima, uso e cobertura da terra e condições de superfície. A eliminação das covariáveis foi realizada por meio de dois processos: coeficiente de correlação de Pearson e eliminação de ajuste recursivo (RFE). Para validar os modelos, vários índices de desempenho foram usados. Os resultados mostraram que o MLR não teve um bom desempenho. A variável independente de maior importância preditiva foi a vazão equivalente ao volume precipitado, considerando um fator de abstração de 750 mm. Em termos gerais, o RF e o modelo da Earth apresentaram desempenho semelhante e grande capacidade de prever as vazões mínimas e as vazões médias de longo período.

Considerações finais

1-O método tradicional de regressão linear multivariada geralmente fornece boas soluções, mas na maioria das vezes requer análise de cluster para delimitar regiões homogêneas, e tais regiões não podem conter um pequeno número de estações fluviométricas para garantir um número suficiente de graus de liberdade, o que pode ser limitante em condições de poucos postos.

2-O método geoestatístico normalmente suplanta a regressão linear multivariada em condições de malhas densas de estações, com distribuição relativamente uniforme na área de estudo, principalmente em regiões úmidas com alta densidade de drenagem. Tem a vantagem de não exigir a separação da área em regiões homogêneas.

3-Modelos que realizam balanço volumétrico de bacias hidrográficas com base em produtos de satélite geralmente fornecem boas estimativas preliminares de vazão média de longo período (Qm) e são recomendados para grandes regiões com um pequeno número de estações fluviométricas. Tem a vantagem de exigir um pequeno número de variáveis independentes.

4-O estado da arte atual reside em modelos de aprendizado de máquina, como o Random Forest e os Random Forest-variants, por exemplo, que permitem trabalhar com um grande número de características físicas das bacias, geralmente garantindo melhor desempenho do que a regressão linear multivariada, além de também não requerer a divisão da área de estudo em regiões homogêneas. Novos desenvolvimentos nesta área do conhecimento são esperados em um futuro próximo, uma vez que o grande potencial do “Machine Learning” ainda tem sido explorado apenas em pequeno grau.

© Copyright 2024 Wikirriga. Todos os direitos reservados.

Desenvolvido por:

Cultura criativa Véspera Tecnologia

Nós usamos cookies

Este site usa cookies para aprimorar sua experiência de navegação.

Saiba mais